Há umas semanas, eu comecei a escrever sobre as coisas que vi e aprendi sobre a cultura islâmica em 4 meses no “mundo árabe” (leia aqui). Falei um pouco sobre a religião em si, sobre costumes e regras. Hoje pretendo falar sobre coisas mais leves e divertidas: comida, bebida, festas, feriados.
Culinária
Não vou mentir, eu adoro comer. Já falei sobre isso aqui em um texto anterior. E essa viagem especificamente foi, com o perdão do clichê, uma explosão de sabores. É uma culinária muito saborosa, com temperos que a gente mal conhece aqui, e uma influência muito forte do que conhecemos aqui como “comida árabe”, além da indiana, que pela proximidade também se mostra bastante presente.
O primeiro detalhe é que o nosso conceito de comida árabe tem influência de vários locais. Esfiha, por exemplo, é um prato tipicamente libanês, e como não estive no Líbano, basicamente não encontrei esfihas por lá. Mas consegui deixar um libanês muçulmano assustado quando contei a ele que aqui no Brasil existe esfiha de calabresa (foi quase uma afronta pessoal, já que muçulmanos não comem carne de porco).
Por não comerem carne de porco, o cardápio acaba sendo diferente, às vezes de uma forma positiva, outras não tanto. Usa-se muita carne de cordeiro, que é maravilhosa e com a qual não estamos tão acostumados aqui, mas também cheguei a ver “bacon bovino”, que obviamente experimentei, mas preferia ter ficado na curiosidade.
No mais, muitos dos ingredientes são similares aos que temos aqui, com uma pequena diferença que na verdade faz toda a diferença: os temperos. Quando estava lá sempre brincava que finalmente eu tinha entendido porque os europeus se meteram no Cabo das Tormentas ou tentaram dar a volta ao mundo para chegar nas famosas “especiarias” do oriente. São muitos, preparados de muitas formas diferentes, em pratos que às vezes a gente nem imagina. Sumagre, menta, açafrão (que, por sinal, comprei no “souq” - mercado - por R$ 10/g, o que é mais ou menos 1/5 do que pagamos aqui), e muitos outros que às vezes eu nem sabia identificar. Quando voltei, primeiro passei na livraria e comprei uns livros locais de receitas (em inglês), li os livros, identificando os ingredientes que teria dificuldade em achar aqui, aí fui no mercado e comprei. Quando voltei, acho que metade de uma das malas era de comida.
Por último, as sobremesas. Não sou muito fã daquelas sobremesas árabes clássicas que temos por aqui, mas duas coisas lá me chamaram bastante a atenção: o uso de água de rosas (tem um tipo de pudim delicioso feito com rosas, que obviamente eu trouxe umas caixinhas pra cá), e as tâmaras. Como “produto nacional” dos sauditas em termos de culinária, elas são quase onipresentes. Existem muitos tipos e categorias, e eu peguei tanto o costume de comer que trouxe 1kg pro Brasil quando voltei. O problema é que comer demais às vezes te faz enjoar, e foi meio que o que aconteceu.
Bebidas
Aqui se faz necessário, obviamente, separar as bebidas alcoólicas das não-alcóolicas, já que o tópico “álcool” é algo bastante relevante no contexto do islamismo.
Em termos das não-alcoólicas, lá como aqui café e chá são campeões da preferência popular. Mas as semelhanças ficam por aqui: existem muitos, muitos tipos de chá, principalmente devido à proximidade com regiões produtoras, como Índia e Sri Lanka, e lá o costume de se tomar com leite é muito mais difundido. Quanto ao café, lá também as diferenças regionais são muito grandes, mas posso falar principalmente de dois tipos:
o café árabe: o meu favorito, de longe. Sua técnica de preparo vem dos materiais e condições encontradas no deserto: o café é bem menos torrado, o pó vai dentro da água fervente, e o bule vai e volta da superfície quente como forma de fazer os sabores se fundirem (originalmente era feito sobre a areia quente no deserto). Depois de um bom tempo de fervura, deixa-se decantar para servir (e por isso os bules árabes têm aquele formato peculiar: é uma forma de não deixar o pó que está no fundo ir para a xícara). O resultado é um líquido dourado, que quase não parece o café que estamos acostumados, mas eu adorei. Era esse o café que o “tio da copa” servia no escritório, e também quando voltei trouxe o bule e o pó para fazer aqui, com graus não tão altos de sucesso.
o café turco: apesar de ser preparado tradicionalmente da mesma forma que o café árabe, remontando ao deserto, o café turco é bem diferente em sua essência: o pó de café, bem torrado e moído bem fino, é misturado com a água e por lá fica. O gerente de projetos turco lá na Arábia Saudita me levou pra tomar um desse, e eu sem poder dizer que não gostei…
Muitas vezes, especialmente quando em grupos, o café é acompanhado pelo shisha, que é como é chamado no mundo árabe o que nós aqui conhecemos como narguilé.
Fora isso, sem grandes novidades em termos de bebidas não-alcoólicas: refrigerantes são basicamente os mesmos, não vi sucos muito diferentes, o que tem de novidade mesmo são o assunto seguinte: as bebidas que normalmente teriam álcool mas não têm.
Pelo Alcorão, o muçulmano não pode consumir bebida alcoólica, ponto. Agora, o país permitir ou não a comercialização e consumo de álcool depende mais do quão rígido e quão aberto a culturas não-muçulmanas dentro de seu território ele é:
Arábia Saudita: completamente proibido. O único lugar onde vi bebida no país foi quando fui ver um jogo do Brasil na Copa do Mundo de 2018 na embaixada brasileira. E assim mesmo, a equipe da embaixada contou que estava cada vez mais difícil trazer as bebidas como “remessa diplomática”. Fora isso, nada. Claro, conheço gente que chegou a fazer aguardente de arroz fermentado no hotel, mas fora isso, nem pensar. Com isso, o que eles chamam de “cerveja” por lá tem uma liberdade poética enorme. Tinha tanto a cerveja sem álcool como temos aqui, como também vários refrigerantes maltados que de cerveja tinham muito pouco. Um colega de projeto turco comprou um vinho sem álcool que supostamente a esposa adorava, mas não cheguei a experimentar para saber se era suco de uva ou algo diferente.
Omã: aqui foi uma situação curiosa, o único lugar do país onde era possível comprar álcool era o duty free. Nunca vi tanta gente comprando fardo de cerveja e bebida mais barata no aeroporto. Comprei uma garrafa pequena de whisky, levei para o hotel, sem problema algum. Mas não tinha mais nada para vender em lugar nenhum.
Emirados Árabes: alguns bares e hoteis podem comercializar bebidas, mas são poucos. O hotel onde eu ficava era um destes, então o bar vivia cheio.
Jordânia: liberado, inclusive falei do “bar mais antigo do mundo” perto de Petra nesse texto.
Bósnia e Herzegovina: a Bósnia é um país com uma população islâmica bem representativa, fazia parte do Império Otomano até o começo do século XX. Claro que não há nada em termos de leis proibindo, mas lembro de ter ido a um restaurante muçulmano e não ter nada alcoólico, refletindo de fato a religião.
Todos esses exemplos são mais para mostrar que mesmo nos países islâmicos, a coisa varia muito, dependendo especialmente do nível de controle que o país exerce sobre os costumes da população.
Festas e feriados
Em geral, os feriados têm a ver com celebrações religiosas, como aqui. Mas, ao contrário daqui, costumam ser mais longos e exigir atividades específicas dos muçulmanos, embora também envolvam festa e celebração.
Talvez o mais conhecido seja o Ramadan, o mês de jejum que acontece todo ano, no qual os muçulmanos não ingerem nada desde o nascer até o pôr do sol. Mas o que não é tão conhecido é o Eid Al-Fitr, um período de 3 dias ao final do Ramadan dedicado a celebração depois de um mês de jejum, oração e caridade. Aliás, é curioso como uma boa parte dos feriados por lá são ao longo de vários dias.
Também ao final do Hajj (período de peregrinação a Meca), temos o segundo feriado mais importante: o Eid Al-Adha (festa do sacrifício), que dura quatro dias e comemora a devoção de Abraão, que foi ordenado por Deus que sacrificasse o seu filho, e obedeceu, embora Deus tenha substituído o filho por uma ovelha no último momento. Por esse motivo, normalmente sacrifícios de animais são realizados nessa época.
Um detalhe importante sobre os feriados (e sobre todo o calendário islâmico, na verdade) é que, ao contrário do nosso, tudo é baseado no ciclo lunar (não à toa a lua crescente é o símbolo do islamismo). Isso tem algumas consequências: um certo desalinhamento entre o calendário deles com o nosso (o que faz com que o ano novo, o Ramadan, e basicamente todas as datas caiam em épocas diferentes para nós a cada ano), e também a definição dos meses e dias com base nas fases da lua. E, apesar de toda a tecnologia, isso ainda envolve observação direta da lua pelos sábios da religião. O Eid-Al-Fitr no ano que eu estava lá estava previsto para terça a quinta (lembrando que o fim de semana é sexta e sábado). Pois na semana anterior, o feriadão foi pro espaço, já que o feriado mudou para segunda a quarta. Honestamente, não sei como eles fazem para se programar e viajar…
Existem também os feriados “seculares”, embora normalmente nesses dias as pessoas trabalhem normalmente: dias como o ano novo ou fundação do país.
(A ideia era que esse texto fosse um post só, mas já está basicamente virando uma série em capítulos. Ainda quero falar de arquitetura, de arte, do idioma, e de outros assuntos. Em breve volto com mais um episódio.)